top of page

A MÚSICA E AS HARMONIAS CELESTES.
Continuação; ver o número de janeiro, p.30.
(Paris, grupo Desliens, 5 de janeiro de I869. - Médium Sr. Desliens.)
Tendes razão, senhores, de me lembrar minha promessa, porque o tempo, que
passa tão rapidamente no mundo do espaço, tem minutos eternos para aquele que sofre
sob o aperto da prova! Há alguns dias, algumas semanas, eu contava como vós; cada dia
acrescentava toda uma série de vicissitudes às vicissitudes já suportadas, e a taça ia se
enchendo piano, piano.
Ah! vós não sabeis o quanto um elogio de grande homem é pesado para carregar!
Não desejeis a glória; não sejais conhecidos; sede úteis. A popularidade tem os seus
espinhos, e, mais de uma vez, me encontrei pisado pelas carícias muito brutais da
multidão.
Hoje, a fumaça do incenso não me embriaga mais. Eu pairo sobre as mesquinharias
do passado, e é um horizonte sem limite que se estende diante de minha insaciável
curiosidade. Também, as horas caem por grupos na ampulheta secular, e sempre
procuro, sempre estudo, sem jamais contar o tempo escoado.
Sim, eu vos prometi; mas quem pode se gabar de ter uma promessa, quando os
elementos necessários para cumpri-la pertencem ao futuro? O poderoso do mundo, ainda
sob o sopro das adulações dos cortesãos, pode querer mitigar o problema corpo a corpo;
mas não era mais de uma luta factícia que se tratava aqui; não havia bravos, barulhentas
aclamações para me encorajar e ocultar a minha fraqueza. Era, e é ainda a um trabalho
sobre-humano que ataquei; é contra ele que luto sempre, e se espero dele triunfar, não
posso no entanto dissimular o meu esgotamento. Estou abatido... agoniado!... repouso
antes de explorar de novo; mas, se hoje não posso vos falar do que será o futuro, saberei
talvez apreciar o presente: ser crítico, depois ter sido criticado. Vós me julgareis, e me
aprovareis se eu for justo, o que tentarei fazer evitando as personalidades.
Por que tantos músicos e tão poucos artistas? tantos compositores, e tão poucas de
verdades musicais? Ai de mim! é que não é, como se acredita, da imaginação que a arte
pode nascer; não há outro senhor e outro criador senão a verdade. Sem ela, nada é, ou
não é senão uma arte de contrabando, de imitação, da contrafação. O pintor pode iludir e
mostrar o branco, onde ele não colocou senão uma mistura de cores sem nome; as
oposições de nuanças criam uma aparência, e foi assim que Horace Vernet, por exemplo,
pôde fazer parecer de um branco brilhante um magnífico cavalo baio.
Mas a nota não tem senão um som. O encadeamento dos sons não produz uma
harmonia, uma verdade, senão se as ondas sonoras se fizerem o eco de uma outra
verdade. Para ser músico, não basta mais alinhar as notas sobre uma pauta, de maneira
a conservar a justeza das relações musicais; somente assim se consegue produzir ruídos
agradáveis; mas é o sentimento que nasce sob a pena do verdadeiro artista, é ele que

canta, que chora, que ri... ele assobia na folhagem com o vento agitado; ele pula com a
vaga espumante; ele ruge com o tigre furioso!... Mas para dar uma alma à música, para
fazê-la chorar, rir, uivar, é preciso em si mesmo ter sentido estes diferentes sentimento,
de dores, de alegria, de cólera!
É o riso nos lábios e a incredulidade no coração que personificareis um mártir
cristão? Será um cético de amor que fará um Romeu, uma Julieta? É um boêmio
negligente que criaria a Margarida de Fausto? Não! É preciso a paixão inteira àquele que
faz vibrar a paixão!... E eis porque, quando se enegrece tantas folhas, as obras são tão
raras e as verdades excepcionais: é que não se crê, é que a alma não vibra. O som que
se ouve é o do ouro que tine, do vinho que crepita!... A inspiração é a mulher que se
compõe uma beleza mentirosa; e, como não se possui senão os defeitos e as virtudes
maquilados, não se produz senão um folheado, senão uma maquilagem musical. Raspai
a superfície, e logo tereis encontrado o calhau.
ROSSINI

(17 de janeiro de 1869. - Médium, Sr. Nivard.)
O silêncio que guardei sobre a pergunta que o Mestre da Doutrina Espírita me dirigiu
foi explicado. Era conveniente, antes de abordar esse difícil assunto, me recolher, me
lembrar, e condensar os elementos que estavam sob minha mão. Eu não tinha que
estudar a música, somente tinha que classificar os argumentos com método, a fim de
apresentar um resumo capaz de dar a idéia de minha concepção sobre a harmonia. O
trabalho, que não fiz sem dificuldade, está terminado, e estou pronto para submetê-lo à
apreciação dos espíritas.
A harmonia é difícil de definir; freqüentemente é confundida com a música, com os
sons, resultante de um arranjo de notas, e das vibrações de instrumentos reproduzindo
esse arranjo. Mas a harmonia não é isto, não mais do que a chama não é a luz. A chama
resulta da combinação de dois gases; ela é tangível; a luz que ela projeta é um efeito
dessa combinação, e não a própria chama: ela não é tangível. Aqui, o efeito é superior à
causa. Assim o é na harmonia; ela resulta de um arranjo musical, é um efeito que é
igualmente superior à sua causa: a causa é brutal e tangível; o efeito é sutil e não é
tangível.
Pode-se conceber a luz sem chama e compreende-se a harmonia sem música. A
alma está apta para perceber a harmonia fora de todo concurso fora de instrumentação,
como ela está apta a ver a luz fora de todo concurso de combinações materiais. A luz é
um sentido íntimo que a alma possui; quanto mais esse sentido está desenvolvido, melhor
ela percebe a luz. A harmonia é igualmente um sentido intimo da alma: ela é percebida
em razão do desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, quer dizer, fora das
causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina; elas são possuídas em
razão dos esforços que se fez para adquiri-las. Se eu comparo a luz e a harmonia, é para
melhor me fazer compreender, e também porque essas duas sublimes alegrias da alma
são filhas de Deus, e, por conseqüência, são irmãs.
A harmonia do espaço é tão complexa, ela tem tantos graus que conheço, e muito
mais ainda que me estão ocultos no éter infinito, que aquele que está colocado a uma
certa altura de percepção, é como tomado de admiração contemplando essas harmonias
diversas, que constituiriam, se estivessem reunidas, a mais insuportável cacofonia; ao
passo que, ao contrário, percebidas separadamente, elas constituem a harmonia
particular a cada grau. Essas harmonias são elementares e grosseiras nos graus
inferiores; elas levam ao êxtase nos graus superiores. Tal harmonia que ofende um
Espírito de percepções sutis arrebatam um Espírito de percepções grosseiras; e, quando
é dado ao Espírito inferior se deleitar nas delícias das harmonias superiores, o êxtase o
toma e a prece entra nele; o arrebatamento o leva às esferas elevadas do mundo moral;
17
ele vive de uma vida superior à sua e gostaria de continuar a viver sempre assim. Mas,
quando a harmonia cessa de penetrá-lo, ele desperta, ou, querendo-se, ele adormece; em
todos os casos, retorna à realidade de sua situação, e nos lamentos que deixa escapar
por ter descido, se exala uma prece ao Eterno, para pedir a força de revigorar-se. É para
ele um grande motivo de emulação.
Não tentarei dar a explicação dos efeitos musicais que o Espírito produz agindo
sobre o éter; o que é certo é que o Espírito produz os sons que quer, e que não pode
querer o que não sabe. Ora, pois, aquele que compreende muito, que tem em si a
harmonia, que dela está saturado, que goza ele mesmo de seu sentido íntimo, daquilo
nada impalpável, dessa abstração que é a concepção da harmonia, age quando quer
sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que o Espírito concebe e quer. O
éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia que este último traz em si se
concretiza, por assim dizer; ela se exala doce e suave como o perfume da violeta, ou ela
ruge como a tempestade, ou ela brilha como o raio, ou ela se lamenta como a brisa; ela é
rápida como o relâmpago, ou lenta como a nuvem; quebrada como um soluço, ou unida
como uma relva; é descabelada como uma catarata, ou calma como um lago; ela
murmura como um riacho ou estoura como uma torrente. Ora tem a aspereza agreste das
montanhas e ora a frescura de um oásis; ela é alternativamente triste e melancólica como
a noite, feliz e alegre como o dia; é caprichosa como a criança, consoladora como a mãe
e protetora como o pai; ela é desordenada como a paixão, límpida como o amor, e
grandiosa como a Natureza. Quando ela está neste último termo, se
confunde com a prece, glorifica a Deus, eleva ao arrebatamento aquele mesmo que
a produz ou a concebe.
Ó comparação! Comparação! Por que é preciso ser obrigado te empregar! Porque é
preciso dobrar-se às necessidades degradantes e emprestar, à natureza tangível,
imagens grosseiras para fazer conceber a sublime harmonia na qual o Espírito se deleita.
E ainda, apesar das comparações, não se pode fazer compreender esta abstração que é
um sentimento quando ela é causa, e uma sensação quando se torna efeito.
O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o Espírito que tem a aquisição
intelectual; eles gozam constantemente, um e o outro, da propriedade inalienável que
acumularam. O Espírito inteligente, que ensina sua ciência àqueles que ignoram, sente a
felicidade de ensinar, porque sabe que faz felizes aqueles que ele instrui; o Espírito que
faz ressoar o éter dos acordes da harmonia que está nele, sente a felicidade de ver
satisfeitos aqueles que o escutam.
A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a
primeira o arrebata, a segunda o esclarece, a terceira o educa. Possuídas em suas
plenitudes, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as
contendes! descei às nossas trevas e iluminai a nossa marcha; mostrai-nos o caminho
que haveis tomado a fim de que sigamos os vossos rastros!
E quando penso que esses Espíritos, dos quais posso compreender a existência,
são seres finitos, átomos em face do Senhor universal e eterno, minha razão fica
confundida pensando na grandeza de Deus, e da felicidade infinita que ele goza em si
mesmo, pelo único fato de sua pureza infinita, porque tudo o que a criatura adquire não é
senão uma parcela que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela
vontade, a cativar e arrebatar pela suavidade, a resplandecer pela virtude, que deve, pois,
produzir a fonte eterna e infinita de onde ela é tirada? Se o Espírito, ser criado, chega a
haurir em sua pureza tanta felicidade, que idéia deve-se ter daquela que o Criador haure
em sua pureza absoluta? Eterno problema!
O compositor que concebe a harmonia, a traduz na grosseira linguagem grosseira
chamada a música; concretiza a sua idéia, escreve-a. O artista estuda a forma e pega o
instrumento que deve lhe permitir exprimir a idéia. O ar posto em movimento pelo
instrumento, leva-a ao ouvido que a transmite à alma do ouvinte. Mas Mas o compositor foi

18
impotente para exprimir inteiramente a harmonia que concebia, por falta de uma
linguagem suficiente; o executante, a seu turno, não compreendeu toda a idéia escrita, e
o instrumento indócil do qual se serve não lhe permite traduzir tudo o que compreendeu.
O ouvido é ferido pelo ar grosseiro que o cerca, e a alma recebe, enfim, por um órgão
rebelde, a horrível tradução da idéia eclodida na alma do maestro. A idéia do maestro era
seu sentimento íntimo; embora deturpada pelos agentes da instrumentação e da
percepção, no entanto, ela produz sensações naqueles que os ouvem traduzir; essas
sensações são a harmonia. A música as produziu: elas são os efeitos desta última. A
música é posta a serviço do sentimento para produzir a sensação. O sentimento no
compositor é a harmonia; a sensação no ouvinte é também a harmonia, com esta
diferença de que ela é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da
harmonia; ela a recebe e ela a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o
médium dos Espíritos. Ela a torna mais ou menos deturpada segundo seja mais ou menos
executada, como o refletor reenvia mais ou menos bem a luz, segundo ele seja mais ou
menos brilhante e polido, como o médium expressa mais ou menos os pensamentos do
Espírito, conforme seja ele mais ou menos flexível.
E agora que a harmonia está bem compreendida em seu significado, que se sabe
que ela é concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que há
entre a harmonia da Terra e a harmonia do espaço.
Entre vós, tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de
percepção; entre nós, tudo é sutil: tendes o ar, nós temos o éter; tendes o órgão que
obstrui e vela; entre nós, a percepção é direta, e nada a vela. Entre vós, o autor é
traduzido: entre nós, ele fala sem intermediário, e na língua que exprime todas as
concepções. E, no entanto, essas harmonias têm a mesma fonte, como a luz da lua tem a
mesma fonte que a do sol; do mesmo modo que a luz da lua é o reflexo da do sol, a
harmonia da Terra não é senão o reflexo da harmonia do espaço.
A harmonia é tão indefinível quanto a felicidade, o medo, a cólera: é um sentimento.
Não se a compreende senão quando se a possui, e não se a possui senão quando se a
adquire. O homem que é alegre não pode explicar a sua alegria; o que é medroso não
pode explicar o seu medo; eles podem dizer os fatos que provocam seus sentimentos,
defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos permanecem inexplicados. O fato que causa
a alegria de um não produzirá nada sobre o outro; o objeto que ocasiona o medo de um
produzirá a coragem do outro. As mesmas causas são seguidas de efeitos contrários; em
física isto não existe, em metafísica isto existe. Isto existe porque o sentimento é a
propriedade da alma, e que as almas diferem entre si de sensibilidade, de
impressionabilidade, de liberdade. A música, que é a causa segunda da harmonia
percebida, penetra e transporta um e deixa o outro frio e indiferente. É que o primeiro está
em estado de receber a impressão que a harmonia produz, e que o segundo está num
sentido contrário; ouve o ar que vibra, mas não compreende a idéia que lhe traz. Este
chega ao tédio e dorme, aquele ao entusiasmo e chora. Evidentemente, o homem que
goza as delícias da harmonia é mais elevado, mais depurado do que aquele que ela não
pode penetrar; sua alma está mais apta a sentir; ela se desliga mais facilmente, e a
harmonia a ajuda a se desligar; ela a transporta e lhe permite ver melhor o mundo moral.
De onde é preciso concluir que a música é essencialmente moralizadora, uma vez que
leva a harmonia às almas, e que a harmonia as eleva e as engrandece.
A influência da música sobre a alma, sobre o seu progresso moral, é reconhecida
por todo o mundo; mas a razão dessa influência é geralmente ignorada. Sua explicação
está inteiramente neste fato: que a harmonia coloca a alma sob a força de um sentimento
que a desmaterializa. Esse sentimento existe em um certo grau, mas ele se desenvolve
sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que está privado desse
sentimento a ele é levado gradativamente; acaba ele também por se deixar penetrar e se

deixar arrastar ao mundo ideal, onde ele esquece, por um instante, os grosseiros prazeres
que prefere à divina harmonia.
E agora, se se considera que a harmonia sai do concerto do Espírito, disto se
deduzirá que se a música exerce uma feliz influência sobre a alma, a alma, que a
concebe, exerce também a sua influência sobre a música. A alma virtuosa, que tem a
paixão do bem, do belo, do grande, e que a adquiriu da harmonia, produzirá obras-primas
capazes de penetrar as almas mais endurecidas e comovê-las. Se o compositor é terra-a-
terra, como daria a virtude que desdenha, o belo que ignora e o grande que não
compreende? Suas composições serão os reflexos de seus gostos sensuais, de sua
leviandade, de sua negligência. Elas serão ora licenciosas e ora obscenas, ora cômicas e
ora burlescas; elas comunicarão aos ouvintes os sentimentos que o exprimirão, e os
perverterão ao invés de melhorá-los.
O Espiritismo, em moralizando os homens, exercerá, pois, uma grande influência
sobre a música. Ele produzirá mais compositores virtuosos, que comunicarão suas
virtudes fazendo ouvir suas composições.
Rir-se-á menos, chorar-se-á mais; a hilaridade dará lugar à emoção, a fealdade dará
lugar à beleza e o cômico à grandeza.
De um outro lado, os ouvintes que o Espiritismo terá dispostos a receberem
facilmente a harmonia, sentirão, na audição da música séria, um encanto verdadeiro; eles
desdenharão a música frívola e licenciosa que se apodera das massas. Quando o
grotesco e o obsceno forem deixados pelo belo e pelo bem, os compositores dessa ordem
desaparecerão; porque, sem ouvintes, eles não ganharão nada, e é para ganhar que eles
se sujam.
Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música! Como poderia sê-lo de outro
modo? Seu advento mudará a arte, em depurando-a. Sua fonte é divina, sua força o
conduzirá por toda a parte onde houver homens para amar, para se elevar e para
compreender. Tornar-se-á o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores,
compositores, poetas pedir-lhe-ão suas inspirações, e ele as fornecerá, porque é rico,
porque é inesgotável.
O Espírito do maestro Rossini, numa nova existência, retornará para continuar a arte
que ele considera como a primeira de todas; o Espiritismo será o seu símbolo e o
inspirador de suas composições.
ROSSINI

bottom of page