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ARIGÓ: VIDA, MEDIUNIDADE E MARTÍRIO
José Herculano Pires
Publicação original: 1963
Editora Edicel
Edição digitalizada:
© fevereiro, 2020 – Brasil
Distribuição gratuita
Portal Luz Espírita
Autores Espíritas Clássicos

Do Aleijadinho ao Arigó
Congonhas do Campo, a duas horas de automóvel de Belo Horizonte por estrada asfaltada, é uma cidadezinha carismática. Na sua humildade e sobretudo na sua rusticidade, pousada entre montanhas de minérios, conserva um dos mais ricos monumentos de religião e arte do Brasil: o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, erguido na segunda metade do século XVIII, com o famoso adro em que se veem as doze estátuas dos Profetas do Aleijadinho esculpidas em pedra-sabão. Impressiona poderosamente a visão daquelas estátuas que guardam a individualização de cada figura bíblica, plasmada pelo gênio obscuro de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Através dos séculos a estatuaria de Mestre Antônio Francisco exerceu inimaginável influência nas populações rurais da região, atraindo-as para a Igreja que se tornou verdadeiro centro de misticismo e taumaturgia. Nas festas de São Bom Jesus a cidadezinha é invadida por multidões de doentes e aleijados que acorrem ao Santuário como os mendigos e leprosos do tempo de Jesus afluíam ao lago de Betsaida. E os milagres se multiplicam de ano para ano, consagrando cada vez mais o carisma, a graça divina que assinala Congonhas. Há uma curiosa sintonização entre os reinos extremos do mineral e do hominal. Como no ciclo do ouro, o homem procura ainda hoje a sua salvação física e espiritual nas figuras de pedra, e estas respondem ao anseio humano revelando aos devotos a magia das formas que o Aleijadinho e seus auxiliares fixaram no minério. Os extremos se encontram.
Essa dialética da fé, que surge espontânea da alma ingênua do povo, resulta no clima de misticismo e de religiosidade fanática que domina a região. A tradição esmaga as gerações que desfilam contemplativas e apáticas ante o poder misterioso dos Profetas, em cujo olhar vazio — os globos minerais parecem mortos ou extáticos na expressão viva do rosto — a eternidade se reflete implacável. Poderíamos dizer que o gênio artístico-religioso do Aleijadinho magnetiza a alma do povo através dos séculos, com o estranho vazio daquelas órbitas de pedra. Mas esse magnetismo, pela sua própria natureza contraditória, no jogo permanente e invariável entre o eterno e o efêmero, no contraste da pedra fria com o
sangue a ferver na carne sertaneja, é a fonte natural de que brotam o pecado e o perdão, o crime e a virtude, a miséria da doença e o esplendor
do milagre.
Congonhas do Campo é humilde e grandiosa, estranha mistura de debilidade e força, de profano e sagrado, de vulgar e sublime, de transitório
e eterno. Curioso como a alma humana conseguiu vencer, naquele reino mineral, a resistência da matéria bruta para nela fixar as suas aspirações de beleza e eternidade. Nada mais justo que, nesse meio de psiquismo telúrico, nesse ambiente de sublimação estática em que a pedra reflete na
sua imobilidade o tumulto das paixões e a força do espírito, o homem rompesse finalmente os moldes impassíveis da contemplação para explodir
na sua atividade psíquica, através da potência do paranormal.
Arigó é a réplica do Aleijadinho a sua própria obra. Com o sensitivo de Congonhas o artista dos Profetas se resgata a si mesmo. Mestre Antônio Francisco rompe as armaduras minerais em que encerrou o seu poder criador, para desencadeá-lo novamente no seio do povo. A taumaturgia dos Profetas, que emanava silenciosa do minério, subitamente se transfunde em atividade humana. É assim que podemos entender, no plano mais vasto da História, acima das aparências do contingente, a ligação entre o Aleijadinho e Arigó. Este afirma que a sua missão pertence àquele. Foi Mestre Antônio Francisco quem preparou a sua eclosão mediúnica. Fritz, o médico alemão que opera através de suas mãos, é um auxiliar do mestre. Fritz, por sua vez, diz o mesmo: "Se estou aqui, a culpa é do Aleijadinho."
Interpretando esse fato no plano do contingente e portanto da aparência, a ligação entre o Aleijadinho e Arigó comporta apenas duas explicações: a psiquiátrica, de ordem alucinatória, e a espírita, de ordem mediúnica. Mas no plano histórico a sequência cronológica estabelece a continuidade, a tradição supera a fragmentação temporária e consequentemente o mistério da eternidade se transfunde na lógica da duração. O tempo que correu entre o Aleijadinho e Arigó aparece então como um continuum. As estátuas de pedra agiram nesse processo como catalisadoras. O tempo e as gerações constituem a massa de reação acelerada e no momento da transformação os Profetas mantêm a sua impassibilidade mineral, de olhos vazios fitos na eternidade.
Há problemas que não podemos equacionar de maneira simples ou corriqueira, sob pena de jamais chegarmos à solução. No caso Arigó há dois aspectos que funcionam em forma de polaridade. Num polo está o banal, como simples aparência: o caboclo mineiro empolgado por forças subliminares ou subconscientes que o transformam em taumaturgo ou charlatão. No outro polo está o supranormal: a ação histórica prolongando na duração a cadeia de eventos temporais. O raciocínio simplista pode levar os observadores a uma das pontas do dilema do primeiro polo. A explicação do caso, que se torna impossível, será oferecida por um simples dar-de-ombros, equivalendo a uma destas afirmações: Arigó é um santo; ou Arigó é um mistificador. O raciocínio profundo levará fatalmente a uma conclusão única: Arigó é um sujet paranormal.
As duas afirmações simplórias pertencem ao passado. Hoje, com o desenvolvimento científico a que chegamos, é inadmissível explicar-se em termos teológicos ou em termos de impostura a série de fenômenos ocorridos com Arigó. Só a ignorância ou a má fé poderá fazê-lo. A conclusão
lógica do paranormal impõe-se como evidência, e como tal apoiada nas investigações científicas da Metapsíquica, no passado, e da Parapsicologia,
no presente. Mas também apoiada no próprio desenvolvimento das ciências físicas, que romperam neste século o domínio da aparência, para
descobrirem, na intimidade da matéria, a realidade energética. O próprio conceito físico do continuum espaço-tempo constitui elemento fundamental da compreensão desse processo histórico, que dialeticamente se equaciona em termos de duração no plano do vitalismo bergsoniano.
Colocado assim o problema, podemos compreender a ligação
Aleijadinho-Arigó sem necessidade de aceitarmos a natureza espirítica do caso de Congonhas. A cidadezinha carismática passa historicamente de um plano a outro, sem qualquer violência para a convicção ideológica de quem quer que seja. As romarias a Congonhas do Campo, que marcaram no passado a força atrativa dos Profetas de pedra, hoje se desdobram. O poder
dos Profetas se projetou na carne. Podemos dizer que a pedra, que antes fora carne, por ela modelada em sua própria forma, agora volta a ser carne.
Todo um ciclo histórico se define com perfeita nitidez. Mas isso não exclui a explicação espirítica, que se entrosa perfeitamente na explicação histórica. Para os que, como o autor, admitem a sobrevivência do homem após a morte, todo esse processo decorre da continuidade psíquica. Arigó teria, assim, uma relação direta com o Aleijadinho, que é também histórica mas se realiza no plano individual. Dessa relação decorreria todo o processo histórico impessoal que o observador não-espírita reconhece no plano existencial dos eventos.
A ação catalítica dos Profetas de pedra se resolveu na transformação social que Arigó inicia. Um médico do Rio de Janeiro, que publicou um livro com o pseudônimo de Cícero Valério, intitulado Fenômenos Parapsicológicos e Espíritas, declara à pág. 44 do mesmo: "Acompanhado de um colega, Dr. S. C., de sua irmã R.P.M. e seu cunhado E.P.M., inesperadamente, em um sábado, pusemo-nos em demanda da bucólica cidade mineira de Congonhas, em busca da obra genial do Aleijadinho e dos fenômenos extraordinários apresentados pelo grande médium José Pedro de Freitas, vulgarmente conhecido como Arigó". Como se vê, a romaria se divide: por um lado o interesse artístico ainda preso aos Profetas, mas por outro o interesse taumatúrgico que já se desloca para o sensitivo. Este é apenas um exemplo, pois a divisão se manifesta ainda noutra forma. Há os que continuam procurando a cidadezinha carismática por fidelidade ao Santuário, e há os que a procuram unicamente pelo interesse do sensitivo.
De uma maneira ou de outra a continuidade histórica se resolve em desdobramento, no processo dialético que nos leva ao conceito de duração.
O Aleijadinho e Arigó se sintonizam acima do tempo, não como causa e efeito mas como a sincronização que Carl Jung teorizou para os eventos do plano extrafísico. Ainda uma vez o mesmo problema da polaridade: no polo da aparência Aleijadinho pode ser rejeitado como a causa do efeito Arigó mas, no polo do supranormal ambos se juntam e se conjugam, como sincronização, simultaneidade ou coincidência, no mesmo continuum do carisma de Congonhas do Campo.
Claro que os adversários gratuitos de Arigó — gratuitos porque ele não se opõe a ninguém — pensarão que estamos ensaiando a aplicação de teorias escatológicas a um caso banal. Mas aquilo que chamamos banalidade não é apenas um momento da escatologia? Por outro lado, o caso Arigó, como vamos demonstrar, é bem mais grave do que o supõem os que pensam negá-lo com argumentos fáceis.
Feita esta tentativa de mostrar a importância histórica do caso Arigó, para não perdermos a sua dimensão metafísica banalizando-o em nossa micropsiquia, passemos a tratá-lo no plano dos dados concretos. Mas não se iluda o leitor. A cada momento os próprios fatos se incumbirão de colocar-nos de novo em face do absurdo. Como já notamos acima, só temos a alternativa de considerar o caso no plano do contingente ou de considerá-lo no plano do supranormal. Mas devemos entender como supranormal não o sobrenatural, e sim aquilo que não é habitual. Arigó, em nossa opinião, não é um taumaturgo mas apenas um homem que revela extraordinária capacidade psi, ou seja, a posse simultânea de várias
faculdades paranormais, que produzem os chamados fenômenos psi investigados pela Parapsicologia. É o que procuraremos demonstrar.

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